terça-feira, 26 de janeiro de 2010

O “BICO” DOS POLICIAIS MILITARES: VÍNCULO EMPREGATÍCIO OU ILÍCITO ADMINISTRATIVO?

O Texto a seguir é de autoria do Dr. Pedro Durão, Procurador do estado de Sergipe.

O artigo proposto tenta elucidar dúvidas colocadas no cotidiano diante das atividades exercidas pelos Policiais Militares dos Estados-membros em atividades fora do exercício de suas funções públicas.
A realidade dos fatos é cada vez mais visível. A insatisfação dos militares estaduais surge com a freqüência exacerbada aos serviços diários extra-funcionais, patrocinando, portanto, a busca da elevação dos parcos salários que percebem.
A crise se instalou. É de notar a repercussão das “greves” das Polícias Militares que tem invocado a sensibilidade dos governadores e da sociedade em geral, sempre com a mesma bandeira: remunerações achatadas.
Diante desses atos, demonstraram o desagrado e a procura da melhoria dos valores percebidos pelos serviços prestados ao Estado.
Na realidade, observamos exercerem suas atividades como seguranças particulares não habilitados nos supermercados, lojas, residências, clubes, boates, condomínios ou em outras tarefas para entidades privadas.
Uma interessante matéria publicada na mídia local inquina a realidade que passamos:
“Seis anos depois da polêmica que acabou por derrubar a autorização para policiais fazerem bico, o secretário de Segurança Pública, Josias Quintal, anunciou ontem que voltará a liberar o segundo emprego para policiais civis, militares e bombeiros. Eles deverão estar uniformizados e ter autorização dos batalhões. O secretário pediu um estudo jurídico sobre o caso, depois de uma reportagem do GLOBO, no último Domingo, mostrar que policiais da ativa lotearam as ruas da cidade, cobrando de R$ 5 a R$ 360 por mês de moradores e comerciantes para fazer segurança clandestina. Josias explicou que se decidiu pela legalização porque “não adianta ser hipócrita”, já que a população, em sua opinião, aprova o serviço e está disposta a pagar por ele. Com o anúncio, o secretário despertou o debate.
— Se tirarmos a segurança das ruas, a população ainda vai ficar com raiva de nós. Temos que regularizar a situação. O policial que dá o seu suor em defesa da população, com honestidade, tem o meu apoio, mas sou contra a terceirização do serviço de segurança privada com mão-de-obra desqualificada — disse Josias.
Ele afirmou abominar os agenciadores — policiais que dominam o ponto e contratam pessoas sem especialização pagando baixos salários:
— Não admito que o policial faça da segurança um negócio. Esses policiais serão punidos.
O secretário determinou que a faxina começasse dentro da própria secretaria. O sargento Antônio Carlos de Oliveira, lotado na Coordenadoria de Gerenciamento de Contingência, que explora o serviço de segurança clandestina na Rua Belfort Roxo e em parte das ruas Barata Ribeiro e Ministro Viveiros de Castro, em Copacabana, já está sendo investigado. Josias determinou que a PM tomasse as providências para puni-lo.
A bandeira do bico legal, levantada por Josias, coincide com a vontade do deputado Carlos Minc (PT) de voltar a discutir o assunto e até propor o encaminhamento de um novo projeto de lei. Minc derrubou a Lei do Bico, aprovada em 1994 pelo então governador Nilo Batista, porque, de acordo com ele, ela não agradava aos policiais, que só podiam ter um segundo emprego na área de segurança e se fosse autorizado pelo comandante do batalhão (no caso dos PMs).
— Como muitos comandantes eram donos de empresas de segurança, os PMs se viam obrigados a trabalhar para eles. Mas sou favorável à regularização para o policial não ser duplamente punido pelo arrocho salarial e pela clandestinidade. Lamentavelmente, hoje, ele é sub-remunerado e pouco qualificado — disse Minc, que vai marcar uma audiência pública na Assembléia Legislativa e convocar autoridades do governo e policiais. “
Ao lado de tantas outras contradições fáticas, indagações surgem dos fatos delineados sob o ponto de vista jurídico: O PM concursado que está no cargo público pode exercer uma tarefa paralela? Os outros tipos de serviços amplamente realizados no seu horário de folga e com aceitabilidade dos seus superiores hierárquicos constituiria um ilícito administrativo passível de punição disciplinar no seio da Corporação?
Ainda, continuamos a indagar: Será que estas atividades particulares, fora dos quadros estabelecidos para cada agente público é legal? Os créditos trabalhistas advindos desta relação com entidades particulares estariam amparados pelo direito do trabalho? Vejam que as indagações surgem à medida que percorremos os caminhos deste pequeno estudo.
Não se pode deixar de firmar que a realidade brasileira tem demonstrado a dificuldade na remuneração dos agentes públicos comparada com outros países que valorizam o setor terciário. O desprazimento destes propostos da segurança pública dos Estados tem provocado, há algum tempo, a busca incessante ao chamado “bico”.


O “BICO” E A SUA ADMISSÃO PELOS PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO DO TRABALHO.

O Bico, na verdade, trata-se da expressão coloquial utilizada para registrar ou denominar a atividade extra-funcional admitida no meio policial militar como emprego subsidiário.
As premissas iniciais da doutrina consignam a submissão aos princípios gerais do direito trabalhista que caracterizam sua autonomia. Não há dúvida de que as incessantes transformações sociais afetem os princípios do Direito do Trabalho.
Márcio Túlio Viana refletindo sobre a flexibilidade e o que se passa no plano da lei, em monografia premiada, aduz: “É que a norma trabalhista não busca apenas regular as relações trabalhistas entre dois contratantes (para isso seria bastante o direito comum), mas proteger um deles, em face do outro. Se a tutela se vai, nada lhe sobra de especial.”
Repensando o novo Direito do Trabalho, Tarso Genro afirma: “...Por isso é preciso pensar num Direito do Trabalho, não só voltado para interferir na questão da socialização do emprego e das atividades, como também na precariedade, na meia-jornada, na intermediação e na intermitência.”
Aliás, os princípios do Direito Laboral são verdades de um sistema de conhecimento admitidas para sua operacionalização. Se vê, de logo, a configuração dos princípios da proteção, da primazia da realidade, irrenunciabilidade, da razoabilidade, da boa fé e, finalmente, do dúbio pro misero, ainda, permanecendo a enquadrar e tutelar a situação em estudo.
Em verdade, analisando o cerne da questão, há um conflito entre os princípios do direito laboral e outros do direito administrativo, como por exemplo, a busca do interesse público.

DO LOCUPLETAMENTO ILÍCITO POR PARTE DO EMPREGADOR.

Passo a passo, constatamos que não podemos afastar o vínculo trabalhista daqueles militares estaduais que exercem funções paralelas ao cargo público.
Acentua-se, na verdade, o papel do trabalhador, desprendendo sua energia em prol do empregador privado gerando, portanto, responsabilidades empregatícias sob pena de enriquecimento sem causa do ente privado.
A empresa que admite o Policial Militar, verbalmente ou não em seus quadros, lhe tutela créditos trabalhistas por seu labor, independente de vedação normativa.
A consensualidade brota como aspecto pertinente ao consentimento, dispensando maiores formalidades na constituição do mencionado contrato de trabalho. Até porque o militar estadual nesta relação figura-se como empregado por prestar serviços sob dependência do empregador e diante da subordinação jurídica.

DA CARACTERÍSTICAS DA RELAÇÃO DE EMPREGO.

Sabemos que a relação de emprego é alcançada quando se observa a existência dos requisitos do vínculo empregatício, ou seja, o trabalho subordinado, continuado e assalariado. Fundamenta-se, por efeito, na relação de subordinação e dependência hierárquica do empregado.
Perfazendo esse entendimento, podemos firmar que o operador do direito que se depara com o litígio individual trabalhista ou faz análise da contenda se enquadra nos princípios norteadores da relação empregatícia, aplicando ou não os efeitos oriundos do direito laboral ao reclamante policial militar não é pacífica.
É fácil entender que a relação empregatícia não pode ser influenciada pela legalidade ou não do “bico”. Nesse sentido, como reforço ao argumento, o próprio Tribunal Superior do Trabalho firmou a orientação jurisprudencial nº167, afirmando:


POLICIAL MILITAR. RECONHECIMENTO DE VÍNCULO EMPREGATÍCIO COM EMPRESA PRIVADA. Preenchidos os requisitos do art. 3º da CLT, é legítimo o reconhecimento de relação de emprego entre policial militar e empresa privada, independentemente do eventual cabimento de penalidade disciplinar prevista no Estatuto do Policial Militar.

Por outro lado, a atividade paralela reconhecido como o “bico” não tem encontrado guarita em alguns tribunais:
POLICIAL MILITAR. VÍNCULO DE EMPREGO COM EMPRESA PRIVADA. Ausentes os requisitos do art. 2º e 3º da CLT, o serviço de garçom prestado à reclamada, não se amolda à relação de emprego. O policial militar está legalmente impedido de exercer atividade laboral, em face do que dispõe a Constituição Estadual, no seu artigo 46, inciso III. Recurso desprovido. (Ac. 00818.026/96-0 RO - Denis Marcelo de Lima Molarinho - Juiz-Relator. 6ª Turma - Julg.: 26.08.99. Publ. DOE-RS: 13.09.99

POLICIAL MILITAR. VÍNCULO DE EMPREGO COM EMPRESA PRIVADA. Nulo é o contrato realizado por policial militar com empresas comerciais ou industriais, uma vez que ele é impedido por lei de prestar serviços a tais entidades. (TRIBUNAL: 6ª Região. ORIGEM: Procedência : RE05-0001421/96 (5ª JCJ DO RECIFE/PE. DECISÃO: 09 03 1998 TIPO: RO NUM: 8885 ANO: 97. TURMA: 3ª. Relatora NISE PEDROSO).



ILÍCITO ADMINISTRATIVO À LUZ DOS DIPLOMAS CASTRENSES.

Sabe-se que a relação de emprego é alcançada quando se observa a existência dos requisitos do vínculo empregatício, não se excluindo da proteção dispensada aos trabalhadores em geral.
Por outro lado, a atividade paralela desencadeia outros efeitos. Tal como, o ilícito administrativo, no sentido de que o “bico” afronta os ditames castrenses vigentes.
Esse fenômeno sempre existiu, talvez, pela letargia dos seus superiores hierárquicos e do próprio Estado não admitindo medidas contendoras. Tendo, inclusive, alguns superiores utilizado a força pública como suporte para manutenção dos serviços paralelos que lhe confere credibilidade perante a comunidade, diante da facilidade junto aos órgãos de segurança pública.
A crise da categoria e os parcos salários, ou até mesmo o estado de necessidade, como alguns estudiosos tentam sustentar, não afastam a aplicação das sanções administrativas impostas pelos regulamentos disciplinares dos Policiais Militares (RDPM) existentes em cada Estado.
O que está havendo é uma crise institucional nas milícias do Brasil, aguçando a quebra da hierarquia militar e a falta de disciplina, por efeito, comprometendo a ordem pública necessária a sociedade.
Por fim, a violação das obrigações ou dos deveres policiais militares constituirá crime ou transgressão militar, conforme dispuserem as legislações ou regulamentação específica.

CONCLUSÕES.
Finalmente, de tudo que foi cuidadosamente analisado, firmamos as seguintes conclusões a respeito do proposto:
1. O atual direito do trabalho deve tutelar as relações empregatícias, garantindo os créditos trabalhistas oriundos do conhecidos “bicos” praticados pelos Policiais Militares.
2. O empregador privado que acolhe labor alheio não pode deixar de ser responsabilizado pelos créditos trabalhistas pertinentes ao trabalho realizado, uma vez que incorria em locupletamento ilícito, pois é impossível a reposição da força de trabalho.
3. O direito tutelar de cunho público deve galgar espaços para amparar novas relações laborais, adaptando os tradicionais princípios.
4. As Polícias Militares devem prover meios para apurar os atos ilícitos praticados pelos militares estaduais nos chamados “bicos”, com vistas a aplicação das sanções pertinentes a espécie, independente da solução dos dissídios trabalhistas.
5. Torna-se recomendável que o julgador trabalhista, concluindo pelo vínculo de emprego desta natureza, contribua para pacificação dos conflitos doutrinários, dando ciência da transgressão disciplinar ao Ministério Público e ao Administrador público, em busca do interesse coletivo.
6. Os problemas de infra-estrutura e parcos salários desencadeiam a crise institucional nas Milícias brasileiras que devem ser alvo de reflexão pelas autoridades públicas para acarretar urgente e profundas mudanças na atual legislação, com intuíto de coibir conflitos de princípios do direito trabalho e do direito administrativo.

Da perspectiva abordada podemos ver que o assunto não se esgota nesta simples pesquisa.
Em últimas palavras, toda perquirição empreendida parece revelar a necessidade de se robustecer uma formação consciente do aprendizado do direito coevo e das mutações no direito laboral, sempre com o escopo de engrandecimento geral das relações e das adaptações às novas realidades.

BIBLIOGRAFIA:
GENRO, Tarso. Mudanças do direito do trabalho: transição e futuro.
GOMES, Orlando; GOTTSHALK, Elson. Curso de direito do trabalho. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1975, p. 201-213.
GONÇALVES, Nair Lemos (org.). Curso de direito do trabalho: homenagem a Evaristo de Moraes Filho. São Paulo: Ltr, 1983.
MAGANO, Octavio Bueno. Manual de direito do trabalho: direito individual do trabalho. 2. ed. V. II. São Paulo: Ltr, 1980.
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1984.
VIANA, Márcio Túlio. A proteção social do trabalhador no mundo globalizado – direito do trabalhador no limiar do século XXI. Revista V. 63, nº7. São Paulo: LTr. 63-07

0 comentários: